O puerpério, é um período propenso a crises devido às mudanças físicas e psicológicas que o acompanham. Neste período a mulher entra num estado especial, denominado por Winnicott de preocupação materna primária, no qual ocorre um estado de sensibilidade aumentada.

 

atraso na aquisição da linguagem
atraso na aquisição da linguagem

 

O autor afirma que tal preocupação viabiliza a contingência, ou seja, que a mãe possa responder às procura do bébé, tornando-se suficientemente boa, fornecendo um holding pelo qual dá a sustentação subjetiva e objetiva para que o bébé se desenvolva adequadamente dos pontos de vista psicoafetivo, cognitivo e linguístico.

 

No entanto, em algumas mulheres, a preocupação materna primária pode não surgir de imediato, devido ao estado emocional da mãe, que pode ir de situações mais leves a graves. Esta transição necessita de uma reestruturação individual e conjugal que pode gerar sintomas ansiosos e ou mesmo sintomas depressivos.

 

Essas alterações podem impedir a mãe de cuidar e de se vincular ao seu bébé recém-nascido, constituindo risco tanto para o equilíbrio emocional materno, quanto para o desenvolvimento da criança, mesmo no período fetal.

 

Esses fatores possuem etiologia multideterminada, podendo ter influências genéticas, stress psicológico, do contexto cultural e de mudanças fisiológicas no seu desenvolvimento e severidade. Eles não emergem necessariamente nas primeiras semanas pós-parto, surgem em algum outro momento do primeiro ano de vida do bébé.

 

Numa interação típica, mãe e bébé desenvolvem uma comunicação onde a mãe inclui e inicia o bébé no funcionamento linguístico. A não atividade emocional da mãe desregula a criança e dificulta a capacidade do mesmo em interagir socialmente, e em explorar objetos, podendo levar a um sentimento de abandono e desconfiança.

 

Em situações como estas, a comunicação mãe-bébé encontra-se deficitária, não proporcionando a troca de informações que guiam o processo de aquisição da linguagem pela criança e a troca afetiva da díade.

 

Falhas na troca afetiva da díade manifestam-se em estilos maternos distintos, tais como intrusividade ou apatia. Estes estilos são potencializadores para o surgimento de ruturas na interação, que podem gerar riscos ao desenvolvimento infantil, tais como a presença de afeto negativo e de uma sensação de incompetência da mãe no papel materno, até alterações da atividade cerebral do bébé.

 

Os dois instrumentos avaliativos utilizados e analisados neste estudo foram o roteiro IRDI (Indicadores Clínicos de Referência ao Desenvolvimento Infantil) e o SEAL (Sinais Enunciativos de Aquisição da Linguagem).

 

Enquanto o roteiro IRDI tem o foco acompanhar a constituição psíquica nos primeiros 18 meses (Kupfer et al., 2009), onde a presença de 16 ou mais indicadores pode evidenciar ausência de sofrimento psíquico; o SEAL, avalia como está a evolução enunciativa do bébé em relação à sua mãe, dos 3 aos 24 meses, evidencia que 18 ou mais sinais presentes sugerem que a aquisição da linguagem está a ocorrer de forma adequada (Crestani, Moraes & Souza, 2017; Crestani et al., 2020; Fattore et al., no prelo; Souza, 2020).

 

Os dois bébés deste estudo, Henri e Davi, foram avaliados por uma equipa multiprofissional, composta por pediatra, fisioterapeuta, Terapeuta da Fala, psicólogo e terapeuta ocupacional. As duas crianças apresentaram todas as avaliações previstas da pesquisa e foram escolhidas porque apresentavam mães com características de perturbação de saúde mental.

 

Neste artigo, procura-se analisar qualitativamente o cruzamento dos indicadores do roteiro IRDI e dos sinais do SEAL, à luz da história de cada bébé, das cenas de protoconversação inicial e dos diálogos posteriores entre as díades. O acompanhamento dos casos ocorreu em seis faixas etárias, em que foram realizadas filmagens da interação mãe-bébé e a observação dos indicadores e sinais.

 

Discussão

 

Considerando o caso de Isabela e Henri, nomes fictícios, apesar dos sinais de alerta na constituição psíquica e na aquisição da linguagem até os 12 meses, é evidente uma maior sincronia nas suas interações a partir da avaliação dos 17 meses e 6 dias, e a superação do sofrimento aos 25 meses.

Nesse sentido, alguns fatores parecem ter contribuído para esse processo, como o fato de ele ter momentos de busca pela mãe com olhar espontâneo, mesmo que houvesse, no primeiro ano de vida, uma atenção flutuante da criança e uma certa ansiedade da mãe ao buscá-lo na interação, uma vez que ela deixava pouco espaço para as respostas dele.

 

A postura da Isabela evidencia a suplência por meio dos incrementos de solicitações com mais fala e toque físico, encontrada por Saint-Georges et al. (2011), antes dos seis meses, em pais de bébés que receberam diagnóstico de autismo após os dois anos.

 

Embora Henri não tivesse pontuação nos Sinais PREAUT para um risco de autismo (Olliac et al. 2017), os dados sugerem que Isabela percebia a dificuldade de Henri para sustentar a interação com ela e a produção de muitos enunciados tentando chamá-lo. No entanto, o efeito era negativo, pois ele acabava por se proteger do excesso de solicitações maternas. Sabe-se que enunciativamente é desejável que o adulto abra espaço para o bébé se manifestar.

 

É preciso propor e aguardar a resposta, bem como estar pronto para escutar as solicitações do bébé (Souza, 2020), algo também visto no item 4 do roteiro IRDI nos primeiros meses. O fato da Isabela não aguardar as respostas do Henri aos 3 meses de idade reflete no comportamento de Henri, aos 6 meses, de não aguardar as respostas da sua mãe. Tal comportamento constitui uma evidência da dificuldade de alternar presença/ausência e estabelecer a interação na relação.

 

As observações do caso também sugerem que a mãe, embora não tenha estabelecido uma procura para uma intervenção oportuna, parece ter incorporado de algum modo as sugestões da equipa quanto à escuta de Henri, falando menos e esperando as suas respostas, sintonizando-se mais com o bébé e lançando hipóteses. Portanto, mesmo sem estabelecer uma intervenção através de um atendimento formal, manteve-se vinculada à equipa de pesquisa, retornando em todas as avaliações.

 

Essa conduta da mãe foi destacada na análise de Schumacher e Souza (2017) quanto à perceção de pesquisadoras nesse tipo de pesquisa longitudinal, de que é possível estabelecer algum tipo de transferência, mesmo que fora do setting de análise, a partir de uma escuta sensível e acolhedora da mãe e do seu bébé, a qual aconteceria em três tempos.

 

No primeiro tempo, veríamos a observação dos sinais; no segundo, diante da ausência, a escuta atenta da mãe para tirar as suas dúvidas e sanar as suas preocupações; e no terceiro, o estabelecimento de uma intervenção por terapia. No caso de Henri, foi possível atuar nos dois primeiros tempos e reverter os sintomas.

 

Por outro lado, o fato da Isabela ter uma filha mais velha, e ser experiente, parece ter oferecido a segurança necessária para ela continuar investindo na relação ao ponto de agarrar o Henri sem uma terapia semanal. Isso, somado a uma função paterna operante no discurso materno, permitiu que a lógica da castração fosse sustentada. Isabela identificava Henri como alguém com vontade própria, ou seja, supunha um sujeito que possui vontade própria e independência. Ela não desistiu de agarra-lo na relação e logrou evoluções.

 

Já no caso de Davi e Marina, algo distinto passou-se, talvez por Marina ser uma mãe primípara e possuir dificuldades de adaptação em relação ao exercício da função materna, fato relatado na primeira entrevista. Outro aspeto que se destacou foi o Davi se deixar amamentar excessivamente, pois diante de qualquer desconforto, era a forma que Marina o acalmava.

 

Ela não conseguia acalmá-lo pela voz e não apresentava objetos de modo sintonizado e sustentado nas interações, aspeto importante na operação da função paterna e fundamental para a cognição e linguagem. Assim, Davi, aos 27 meses, apresentava um brincar rudimentar e um menor avanço no simbolismo. Além disso, nessa avaliação, começava a produzir algumas vocalizações que são esperadas de um bébé entre 8 e 12 meses, com evidente atraso na aquisição da linguagem.

 

Seguindo no caso de Marina, observava-se o cansaço materno por o seu filho estar dormir cama dos pais, o que pode impactar na qualidade do sono e na saúde mental dela, e ainda afetar a coparentalidade (Covington, Armstrong & Black, 2018; Volkovich et al., 2015; Teti et al., 2015), como a própria Marina indicava ao afirmar problemas conjugais pela presença de Davi na cama dos pais.

 

Quando analisados os resultados no roteiro IRDI e no SEAL de Davi, observou-se que era um caso preocupante e que, apesar de as pesquisadoras terem tentado estabelecer uma escuta atenta e acolhedora, não foi possível estabelecer uma intervenção psicanalítica. A mãe aceitou atendimento com nutricionista diante de sintomas alimentares evidentes, uma estratégia utilizada pela equipa para colocar algum limite na alimentação excessiva. Schumacher e Souza (2017) afirmam que uma das portas de entrada para abordar o risco psíquico no acompanhamento de bébés na puericultura são os sintomas corporais.

 

Nesse sentido, o grupo tentou, pela via do encaminhamento à nutrição e com orientações sobre outras formas de acalmar o Davi via voz e brincar, sustentar alguma separação entre Marina e o Davi. Isso surtiu algum efeito, mas não foi o suficiente para que Marina continuasse a investir e sustentar o diálogo com o Davi nas avaliações seguintes aos primeiros meses. Davi e Marina foram convidados para os encontros de musicoterapia, além de consulta com a psicanalista, mas a mãe não aceitou o convite.

 

Essa possibilidade é citada por Fadel, Kupfer e Barros (2017) ao afirmarem que o principal obstáculo para aceitar uma intervenção oportuna vem dos próprios pais e que, por isso, é importante criar abordagens que evitem a “patologização imaginária de uma criança, para eles ainda tão pequena” (Fadel, Kupfer e Barros, 2017, p.294).

 

Sem um espaço alternativo às indicações até então feitas, a equipa ficou à espera da perceção de que havia um atraso na linguagem aos dois anos de idade para poder fazer um encaminhamento para a Terapia da Fala, o que poderia ser a porta de entrada para uma abordagem terapêutica continuada. É importante ressaltar que Marina demorou mais do que a duração da pesquisa para aceitar essa indicação e não procurou o atendimento junto da equipa.

 

Algumas hipóteses podem ser levantadas acerca desse fato: a primeira sugere uma dificuldade de organização dessa mãe na sua rotina, a segunda a existência de um sofrimento psíquico dessa mãe. Também pode-se pensar numa transferência mais frágil ou inexistente com a equipa da pesquisa, visto que Davi foi avaliado nos limites da faixa etária ou mesmo depois da fase final da pesquisa (27 meses), porque a equipa tinha de insistir que a mãe viesse ao serviço.

 

A utilização do roteiro IRDI põe em relevo a sua importância por fornecer referências positivas do desenvolvimento infantil e permitir que as equipas de saúde possam atuar na vigia da díade mãe-bébé (Kupfer et al., 2009) e no trabalho com equipas de educação (Mariotto, 2009; Fadel, Kupfer e Barros, 2017).

 

O SEAL também demonstrou a possibilidade de deteção precoce de dificuldades em tornar-se um falante da linguagem, de modo a complementar o roteiro IRDI, evidenciando que essa conclusão é comum nos impasses da constituição psíquica e que o Terapeuta da Fala deve estar atento ao psiquismo quando recebe bébés com atrasos na linguagem.

 

Sabe-se que para entrar na linguagem, o sujeito necessita alienar-se ao campo do Outro, mas para que possa emergir como sujeito desejante necessita sair desse lugar de objeto de desejo, o que implica a separação (Couto, 2017). As operações de alienação e separação, que incidem sobre a função materna pelo cruzamento da função paterna, permitem a transição de infans a sujeito de linguagem.

 

Quando há obstáculos a essas operações, vislumbram-se dificuldades nas relações de conjunção e disjunção do ponto de vista enunciativo que são a base para a emergência do primeiro mecanismo enunciativo (Silva, 2009), e sem esse tempo lógico não emerge a capacidade discursiva do bébé (RothHoogstraten, 2020).

 

O SEAL assume maior relevância em casos em que não há histórico de sofrimento psíquico, mas alterações no percurso linguístico dos bébés, como os relatados em Oliveira (2018). Esse referido estudo observou que 25% dos bébés com atraso na aquisição da linguagem não apresentavam histórico de sofrimento psíquico, mas dificuldades na sustentação de um lugar de enunciação pelos pais, ou mesmo dificuldades do bébé ocupar esse lugar com fala, o que acabou por afetar a suposição de falante já identificada como um indicador em linguagem por Verly & Freire (2015).

 

Conclusão

 

O acompanhamento dos casos permitiu perceber que a existência de suposição de sujeito em separado, com adequação da sincronia no diálogo mãe-filho, possibilitou que Henri superasse tanto o sofrimento psíquico, quanto ao risco da aquisição da linguagem já na primeira avaliação do segundo ano de vida.

No caso de Davi, a desistência materna do investimento no diálogo, acompanhada da dificuldade em supor um bébé em separado, evidenciou-se na não reversão do sofrimento psíquico e na emergência de um atraso na aquisição da linguagem. Ainda foi possível observar que em alguns casos é possível reverter o risco a partir dessa escuta sensível da equipa, como ocorreu com Henri e Isabela.

 

Em outros, apesar dos sintomas evidentes, os tempos de estabelecimento de uma intervenção de terapia sese alongam e indicam a importância de equipas de referência nesse acompanhamento dos bébés até idades mais avançadas, pelo menos nos três primeiros anos de vida.

 

Artigo escrito por Carla Cavaco, Terapeuta da Fala